Da longa carreira de Alfred Hitchcock, Mentira é um dos filmes menos referidos do realizador. No entanto, é um dos seus filmes mais pessoais e que marca um ponto de viragem na sua filmografia. Para além de ser o seu filme favorito.
Mentira “nasceu” de uma ideia da responsável do departamento de argumentos do produtor David Selznick, Margaret McDonell, que, com o seu marido Gordon, sugeriram a Hitchcock a história verdadeira de Earle Leonard Nelson, um assassino em série que, nos anos de 1920, ficou conhecido como o “Assassino das Viúvas Alegres”. Hitchcock adorou a ideia e pediu a Gordon McDonell que escreve-se uma sinopse. De seguida, o realizador tentou convencer o premiado escritor Thornton Wilder a escrever o argumento, já que estava desejoso de trabalhar com argumentistas consagrados desde que tinha chegado aos Estados Unidos. Embora não estivesse muito entusiasmado, Wilder aceitou o trabalho como forma de ganhar dinheiro extra para a ajudar a sua irmã doente, antes de ser chamado para o exército. Quando o Wilder começou a trabalhar com Hitchcock, apercebeu-se do respeito que o realizador tinha pela sua obra e o seu entusiasmo pelo filme cresceu. Os dois trabalharam incansavelmente e Wilder ajudou Hitchcock para além do argumento, inclusive na procura de locais para filmar e aprovou, pessoalmente, a cidade e a casa onde o filme foi rodado. Quando Wilder foi, finalmente, chamado para o Exército, o argumento ainda não estava terminado, o que levou outros a contribuir para a versão final: a escritora e argumentista Sally Benson foi chamada para acrescentar alguns momentos mais cómicos; Alma Reville, a mulher de Hitchcock que sempre foi uma grande influência no trabalho do marido tem, em Mentira, um dos raros créditos nos filmes do marido; a actriz Patricia Collinge, que interpreta a irmã de Joseph Cotten, também escreveu, pelo menos, uma cena; e o último a contribuir para o argumento foi o próprio Hitchcock.
O contributo de Hitchcock para o argumento, uma prática pouco habitual no realizador, revelou-se uma experiência bastante pessoal, já que coincidiu com a doença e, posterior, morte da sua Mãe. Situação complicada pelo facto de o realizador não ter conseguido viajar para a ver, em Londres, devido às restrições de viagens durante a II Guerra Mundial. Assim, Mentira revela-se um dos mais “autobiográficos” filmes de Alfred Hitchcock e que marca um ponto de viragem na forma como o realizador retrata a figura materna: a partir daqui, esta é, na maioria das vezes, possessiva, tirânica e má.
Em Mentira, Hitchcock reuniu um conjunto de excelentes actores, incluindo os dois principais protagonistas: Joseph Cotten, na altura sob contracto de David O. Selznick, constrói um excelente e possessivo vilão que é o oposto à da sua figura de galã, e Teresa Wright, na altura sob contracto de Samuel Goldwyn, uma interpretação segura que transmite bem a evolução de sentimentos da sua personagem em relação ao tio. Mentira marca, também, a estreia do actor Hume Cronyn, conhecido pelos filmes Cleópatra e Cocoon: o Regresso e que trabalhou com Hitchcock noutros filmes do realizador como actor (Um Barco e Nove Destinos) e argumentista (A Corda e Sob o Signo de Capricórnio). Hitchcock faz o seu habitual cameo, surgindo no comboio a jogar cartas.
Mentira não ganhou qualquer Óscar (apenas foi nomeado para melhor história original), mas revela-se um complexo filme onde a dualidade entre o bom e o mau é constante e está em quase todos os pormenores, mas acima de tudo, revela-se como um dos filmes mais pessoais de Hitchcock.
Shadow of a Doubt Universal Pictures, EUA, 1943, 108 min., film-noir. Realizador: Alfred Hitchcock. Argumento: Sally Benson, Joan Harrison, Gordon McDonell, Alma Reville, Thornton Wilder. Actores: Joseph Cotten, Teresa Wright, Macdonald Carey, Henry Travers, Patricia Collinge.
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